: o gorgulho [hortas urbanas] :

in words / por escrito

: o gorgulho [hortas urbanas] :

julho 2011   
[ o gorgulho ] : colher para semear | figueiró dos vinhos | portugal

artigo escrito para a publicação sazonal [ o gorgulho ] da Colher Para Semear, associação para a protecção das sementes em Portugal.

Na horta, o tempo não custa a passar

‘Cada um tem a sua paixão, a minha paixão é a horta e plantas dentro de casa. Gosto da horta porque é uma distração. O tempo não custa a passar… é erva para arrancar, caracóis para apanhar, terra para regar, fruto para colher…’

Cristina Espírito Santo

xuxus

: 14h40, Celestino vem buscar-nos a Telheiras numa viajada carrinha creme;

: Criando uma cortina entrelaçada em que as largas folhas se cruzam com o encaracolado dos caules, a planta dos xuxus, que ainda não tem fruto, cobre a parede que divide a propriedade com a do vizinho criando uma transição natural entre o seu verde, e o azul do céu, onde, mesmo que ténue, a lua já dá os ares da sua graça. ‘Xuxu foi crescendo de um ano para o outro. As sementes caiem e vão dando novos rebentos.’.

tomateiros

: Seguimos em direcção a Benfica. Entre prédios e moradias, poucos são os espaços onde se podem identificar pequenas zonas de cultivo;

: Numa estrutura de madeira aparentemente caótica o odor intenso e adocicado das folhas dos tomateiros leva-nos a aproximarmo-nos. Tomates e tomatinhos, em diferentes fases de maturação e diferentes intensidades de vermelho, surgem entre a folhagem.

alfaces

: Ao passar pela Pontinha o tecido urbano vai começando a alterar-se. Nota-se que noções de planeamento são cada vez menos evidentes e entre um caos relativamente organizado começam a surgir os primeiros indícios de ocupação de terrenos públicos para cultivo agrícola;

: Duas ou três alfaces ainda à espera de serem convertidas numa saborosa salada, competem com as restantes. Já a espigar, alfaces de folhagem roxa quebram com a tonalidade verde que reje a horta da Cristina.

espinafres

: Nos pequenos nichos agrícolas, junto à IC16 em direcção a Casal de Cambra, vêm-se crescer variadas espécies alimentícias, agora prontas a serem colhidas. Cercados por cancelas feitas de materiais encontrados (antigas portas e janelas, tábuas de madeira, molas de colchões, e outros mais materiais deixados ao abandono) os terrenos, mesmo que de momento verdejantes, têm implícita a precariedade resultante do clima, quente, e da falta de água para a rega;

: Miudinhos, tenrinhos e trepadores, os espinafres criam um cerco que delimita a horta. 

couve-portuguesa   

: As entrevistas que fiz com Eva Oddo, para a investigação sobre hortas de Lisboa, em vários pontos da cidade onde encontrámos hortas em terrenos Camarários, permitiu-nos perceber que grande parte da população que os ocupa são reformados, com pensões irrisórias que não permitem qualquer forma de subsistência, ou desempregados que, também por motivos económicos, se vêm forçados a cultivar qualquer terreno que se apresenta disponível;

: Nas suas várias fases, a couve-portuguesa aparenta ser o produto predominante na horta. Uns pés menos jovens cheios de vagens de onde já se colhem sementes, contrastam com os rebentinhos que Cristina acaricia por serem ainda tão pequeninos e frágeis e diz-me que envia as sementes que colhe das couves-portuguesas para a família em S. Tomé. ’Lá também cresce de tudo: cenoura, couve, tomate… ’.

tangerineira

: Vinda de Londres, onde as hortas urbanas eram locais simultaneamente de lazer, partilha e com preocupações de cultivo biológico, os terrenos cultivados por onde passamos e os que antes visitei com a Eva, têm um carácter muito mais pragmático que reflecte as necessidades económicas de uma população financeiramente debilitada e cuja maior preocupação é de auto-sustento;

: Penduradas nos ramos da tangerineira, garrafas de água retêm um aglomerado alaranjado que flutua na água. Pergunto-lhe para que serve e o que é exactamente, ao que me responde que a água serve para atrair os bichos que atacam a árvore e os frutos.

pereira

: Muitos dos hortelãos que entrevistámos são provenientes de Cabo Verde e, ao virem para Portugal, sentiram uma enorme necessidade de continuar a cultivar a terra. Cristina conta-me, mais tarde, que ‘Nós em S. Tomé não plantávamos muito.’ Lá nunca plantei um pé de couve. Os S. Tomenses não têm aquele amor à horta, só os Cabo-Verdeanos.’;

: Cristina diz-me como as peras têm muito bicho. São bonitas, mas não são boas para comer.

videira 

: Passamos por locais onde eu nunca antes tinha estado, uma vivência diferente da grande Lisboa, em que a distinção entre os Municípios de Lisboa, Sintra, Amadora e Loures é pouco clara, a sensação de ‘desorganização organizada’ parece dominar as ruas e ruelas dos arredores da capital;

: Olho para cima e vejo um manto de uvas verdes. Peço para trepar ao telhado da arrecadação onde uma estrutura metálica suporta as videiras já carregadinhas de fruto. Cristina aponta para um canto e diz-me que aquele lado foi destruído pelo granizo que caiu em Maio.

piri-piri

: 15h 15 A carrinha pára e a porta de entrada de uma vivenda moderna é-nos aberta por Amélia, a filha de Cristina e Celestino;

: Sempre que penso na Cristina surge uma imagem do seu famoso piri-piri. Contava-me como era doloroso tocar no que fosse nos dias que se seguiam à confecção do picante molho que acompanha quase todos os pratos confeccionados em sua casa. Como os dedos ardiam e as lágrimas escorriam tal era o picante. Finalmente vejo, na sua horta, a planta que dá origem àquele delicioso molho, mas que não pode ser semeada junto dos pimentos, pois ‘Quando semeia pimento junto de piri-piri, só sai piri-piri… o pimento fica a picar’.

salsa

: Ao entrarmos pelo piso térreo não poderíamos antever como seria ‘a horta da Cristina’. Descemos as escadinhas e passamos por um espaço amplo usado como oficina, que nos leva a uma outra vivência da cidade, um pequeno retiro em onde se regista a transição das estações, onde se partilham costumes e tradições de geração em geração. ‘Aquela planta pequenina de comer, fica muito bonita…começa a crescer, dar flor, dar fruto… até a Mafalda (neta) vem regar. Gosta de regar e depois arrancar, arranca as plantinhas e fica toda cheia de terra, pronta para ir para a banheira.’;

: Em caixinhas de esferovite que a Cristina descreve como ‘Aqui é o sítio onde ponho as sementes’ crescem pezinhos de salsa ainda jovens que contrastam com as enormes e idosas plantas que se escondem debaixo da pereira onde já se podem colher as sementes para semear junto à erva príncipe também protegida nas caixinhas de esferovite.

erva-príncipe

: Cristina conta-me, com orgulho ao apontar para os vários produtos cultivados, sobre a forma como iniciou o gosto pelo cultivo. ‘Quando vim para Viseu… lá planta-se de tudo um pouco, é bonito. A senhoria deu um pouco de terreno e eu dava-lhe metade do que tinha na horta. No primeiro ano ficou mal, no segundo melhorou assim, assim… mas com gosto e vontade, pessoa aprende.’;

: De aspecto áspero as folhas da erva-príncipe, quando secas, dão-nos um chá extremamente refrescante.

alho-francês

: Volta a olhar em redor e apontando para as zonas menos verdejantes diz-me que ‘Julho já é altura de colher. Já está tudo seco. Só vivendo cá é que dava para regar de manhã e de noite.’A horta da Cristina é no quintal da filha e, como tal, ‘Horta é só de Primavera e Verão. No Inverno tenho que ir comprar grandes caixas ao MARL (Mercado Abastecedor da Região de Lisboa, S.A.)para a família toda.’;

: Menos jovem, os alhos-franceses, começam a dar flor, um pezinho elegante e frágil retém no topo uma bolinha prestes a rebentar, uma florzinha de onde, em breve, as sementes serão colhidas.

hortelã

: ‘Em Casal de Cambra também tinha uma horta. Antes de vir de Viseu pensei que já não podia passar sem uma horta. A Senhora (vizinha) comprou um apartamento e fez uma horta. Eu vi e perguntei-lhe se também podia ter uma horta ao lado, se pudesse fazer uma horta também fazia. Tinha de tudo: ervilhas, favas, couves…Tinha um cercado para não entrar… tinha uma horta muito bonita.’

: Ainda pequenina, mas já com um forte aroma, a hortelã mantém-se viçosa e será usada para chá e para condimentar pratos tradicionais de S. Tomé.

cebola

: Amélia mostra-me os barris azuis onde recolhem as águas da chuva enquanto Cristina me diz que ‘A maior dificuldade é a rega. Recolhemos da chuva, mas é preciso muita água e é também preciso ter o terreno regado para cavar.’ Os barris não são suficientes para regar, dentro da garagem têm um outro depósito de recolha de água para que nos dias mais secos o terreno se mantenha húmido;

: Vê-se um cantinho cheio de cebolas já grandes que parecem ter desmaiado com o vento. Prontas para serem colhidas e guardadas num local seco para não apodrecerem as cebolas que vemos na horta da Cristina não foram semeadas, mas sim transplantadas ‘Compro as plantas das cebolas em Caneças, em Março, e transplanto-as para a horta.’.

maquêquê

: Sem que me apercebesse, toda a família vem até ao quintal contemplar a horta da Cristina. Celestino, com a neta mais pequena ao colo, aponta para alguns dos produtos agrícolas que me escapavam à vista;

: Nunca antes tinha ouvido tal nome, maquêquê! Um nome gracioso que esconde a aparência discreta da plantinha que dentro de um vaso cresce junto à parede, protegida do sol, e cujo fruto fará parte dos ingredientes do famoso prato S. Tomense, o Calúlú.

cenouras 

: Se a princípio se notava alguma timidez, ao falar dos costumes, praias, peixes e comidas de S. Tomé e daquilo que vê crescer na sua horta, Cristina solta um sorriso matreiro e simultaneamente ternurento de quem tem realmente gosto naquilo que conta das suas vivências.

: Quase imperceptíveis os raminhos das cenouras escondem-se entre a restante vegetação. ‘Já são poucas as cenouras. Vou tirando umas ervas, que a gente gosta de ver…’, diz a Cristina apontando para um dos raminhos que por baixo revela a cor laranja das saborosas cenouras biológicas.

curgetes 

: A minha descoberta sobre a horta da Cristina começou nas vezes que vinha de férias a Lisboa, enquanto vivi em Londres. Contava-lhe como me entusiasmava ver os resultados da minha nova actividade como ‘agricultora urbana de varanda’. Vivíamos num apartamento, junto ao canal, com uma varanda muito comprida virada para sul. Construímos umas caixas com paletes antigas e criámos a nossa primeira plantação da qual colhemos espinafres, rúcula, couve, rabanetes e tomates;

: Também as curgetes já vão sendo poucas, mas mantêm um aspecto carnudo, prontas para serem recheadas e assadas no forno.

abóboras 

: Tínhamos uma cerejeira e uma figueira, tudo em vasos e caixas de madeira. Muito espantada com o facto de eu conseguir ter tudo isto no 3º andar de um apartamento e ainda mais em Londres, Cristina enchia-me as mãos com embrulhinhos de papel cheios de sementes por ela colhidas na sua horta: curgetes, pepinos, tomates e piri-piri e pelo famoso molho de malaguetas que lá em casa poucos conseguem comer, devido à intensidade do picante, mas que na família de Cristina se consome desde o berço;

: ‘Colho uma coisa e semeio outra.’ As flores das abóboras confundem-se com as das curgetes, uma transição natural entre um produto e o outro.

alho 

: Nessa altura, não pensava eu que iria acabar por escrever um artigo sobre a horta da Cristina, os seus saberes e os sabores que se podem recolher de um pequeno terreno nos arredores de Lisboa;

: Pela aparência seria difícil perceber que se trata da planta do alho. Cristina aponta para umas flores, já secas, em que as sementes de alho estão prontas para serem colhidas.

jimboa

: 16h30 Despeço-me e volto a entrar na carrinha em direcção à Pontinha onde apanhei o metro de volta ao centro com a memória daquele cantinho cuidado com tanto carinho e cheio de variedades agrícolas. Um entre vários que se podem encontrar nos arredores da nossa cidade, mas que ainda poucos valorizam a beleza de se poder cultivar num contexto urbano.

: de origem Angolana, a jimboa tem umas flores miudinhas e delicadas, mas apenas as folhas se comem. Cristina diz ter mandado vir as sementes de S. Tomé para poder usar as folhas na condimentação dos seus cozinhados.

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: Sabores de S. Tomé

Após a visita à horta da Cristina, fui procurar uma receita em que se usa a planta maquêquê da qual nunca antes tinha ouvido falar. Assim, termino esta visita à horta com uma receita de Calúlú, um prato S. Tomense, em que o famoso piri-piri da Cristina e o maquêquê descascado vieram de um cantinho bem cultivado e escondido que poderia ser o vosso.

Calúlú

ingredientes: folha galo, óca, tartaruga, pega-lato, mamblemble, maquêquê, libô de água, libo mucanbû, mussúa, codô kê (corda de casa), grão, thili branco, margoso, zaia, matruço, pau três, quissobo, figo porco, fruta-pão e azeite de palma.

peixes: peixinho, peixe (fumado), cabeça de peixe salgado, búzio, tararuga salgada, camarão, fulu-fulu (Atum), maspombo e voador.

preparação: escolhem-se as folhas e cortam-se aos pedacinhos Lavam-se e deitam-se numa panela com água a ferver. Junta-se o quiabo, tomate, cebola, folha de louro, fruta-pão descascada e cortada em pedaços. Pode-se juntar o óleo de palma e o maquêquê descascado no início ou a meio da fervura. Quando estiver tudo bem cozido volta a colocar-se na panela a fruta-pão já pisada para engrossar o calúlú, quando já engrossado põe-se malagueta, o tempero, cebola e a casca de pau pimenta previamente pisados. Junta-se ramos de folha de mosquito e deixa-se ferver, enquanto se vai provando, durante cerca de 10 minutos. Junta-se sal a gosto. O Calúlú é normalmente acompanhado com farinha de mandioca, arroz branco, fuba ou angú.

‘O tempo não custa a passar… é erva para arrancar, caracóis para apanhar, terra para regar, fruto para colher… e já está na hora de ir embora.’

Cristina Espírito Santo

por luísa alpalhão